sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A manga

O sumo doce da manga escorria lentamente pelos compridos dedos das mãos e pelos braços, deixando na pele lisa um rasto fresco e suave e no ar um perfume inconfundível e reminiscente. Pouco importavam as nódoas nas extremidades da blusa que cobriam parte dos braços esguios e naturalmente bronzeados; o perfume fazia-lhe bem aos sentidos reavivando-lhe as memórias de outras tantas gostosas mangas saboreadas sem pressa naqueles incontáveis e felizes dias da sua infância.

A pele morena acompanhava-a desde sempre; dir-se-ia abençoada assim para defender-se do frio que não escolhera para a sua vida, mas que tivera de enfrentar e suportar.
Quando se nasce no calor que aquece o ar e a alma das gentes, o frio de inverno e das relações humanas corta as saliências do rosto e dilacera o coração; agarrar com determinação todas as memórias ajudava-a a aquecer o espírito e a manter quente a esperança de que um dia voltaria a sentir, nem que por breves instantes, toda essa herança perdida do calor humano que outrora fizera parte da sua vida, que perdeu e jamais conseguira recuperar. Não tinha escolhido partir, o destino obrigara-a a partir e rumar a Norte para um país que pouco ou nada lhe dizia, mas que hoje também é o seu.

Tal como aquele líquido amarelo cor de sol fluía pela sua pele, o sangue vermelho e quente como o barro da sua terra circulava no seu corpo e palpitava naquele coração que outrora vira o país onde aquele fruto nascera.

Muitos anos tinham passado, mas todo um intenso passado de infância e juventude continuava a moldar-lhe o carácter.

Aquela manga não era apenas um fruto exótico, mas um pedaço da sua pátria, que o olhar deixara para trás, mas que se mantinha viva na sua alma. A sua voz permanecia musicada com aquele sotaque orgulhosamente mal disfarçado de quem chegou há pouco daquelas paragens onde a vida acontece com outro ritmo, outra cadência, outra magia.

Devorar uma manga até ao caroço era uma expressão simples mas profunda da sua irreverência, do seu inconformismo perante as agruras da vida. Quem sabe escolher uma manga confia sobretudo no olfacto; há um cheiro que tal como a paixão , não se explica, não se ensina, apreende-se.

No fim, depois de saborear toda a polpa e ao passar a língua pelos dentes para livrá-los dos fios aí agarrados com determinação, lembrou-se dos tempos em que andava descalça, em que os seus pés calcorreavam sem destino as poeirentas ruas asfaltadas daquela grande cidade que a vira nascer. Os seus pés desfrutaram dessa liberdade e cresceram um pouco mais, mas sem perderem a beleza e a delicadeza; se havia quem os criticasse pela sua robustez, outros admiravam a solidez, determinação e segurança, que lhe conferiam ao andar.

Pousou o caroço no vaso vazio encostado a um canto do terraço; apeteceu plantá-lo para poder ver crescer uma árvore exótica, mas naquele ambiente de clima frio sabia serem poucas as hipóteses de sucesso, de um dia balouçar-se na rede à sombra de uma frondosa folhagem de mangueira; mas a experiência ensinara-lhe que os sonhos são quase sempre impossíveis até lutarmos por eles; descobrira ao longo da vida, que poderia ser feliz antes de os tornar realidade, desde que algo fizesse para que se concretizassem.

Poderia não viver a realidade do sonho, mas vivia a certeza e inevitabilidade do investimento nas suas aspirações, que a mantinham viva e tanto sentido emprestavam à sua existência..!

2 comentários:

Anônimo disse...

BELO...BELISSIMO...Quem escreve assim já comeu manga com o suco a escorrer até ao cotovelo.... e já provou e gostou de todas essas emoções.Eu tive o previlégio de a primeira manga ser devorada assim....sim pq a primeira foi devorada...todas as outras que lhe seguiram foram cuidadosamente saboreadas.....

Anônimo disse...

Quem escreve assim, pode não viver livre de restrições, constrangimentos, confusões, contrariedades, agressões...enfim vicissitudes do dia a dia, mas sabe sonhar, sabe elevar-se, viver noutra dimensão se preciso for para que a alma se expanda e jamais volte ao seu tamanho normal. Quem escreve assim, já viveu todo o tipo de emoções intensamente e guarda todas numa caixinha de lápis de cor.