terça-feira, 4 de dezembro de 2007

(In)adaptação

Na minha rua, no prédio ao lado, vive um casal de idosos bastante peculiar. Aterraram na cidade como se tivessem sido transportados numa máquina do tempo e trazidos de uma outra época e realidade.
São o paradigma da resistência à mudança, da inadaptabilidade, impermeáveis à alteração comportamental. A sua realidade passada é consideravelmente diversa e distinta da actual.
São um museu vivo do seu antigo e anterior modo de vida rural, de uma forma de estar em acelerado processo de extinção.
As suas atitudes são tão descontraídas, naturais quanto caricatas, por estarem geograficamente deslocadas. Não se adaptaram ao novo espaço em que agora vivem.
Só posso dizer que os conheço através das atitudes que aos olhos de todos vão tendo.
A mulher amarrou uma corda aos dois imponentes castanheiros em redor dos quais se construiu o nosso bem cuidado jardim e quando o sol se despe de insegurança e se desinibe brilhando intensamente, afastando qualquer nuvem do céu azul, é vê-la a estender os tapetes e as colchas para arejar. Caminha veloz e apesar do seu anafado metro e meio é imponente o olhar altivo daqueles chinelos de dançarina de rancho folclórico, que usa todo o ano, com ou sem meia, de acordo com a estação e o estado de tempo. Sempre de saia, remata a indumentária inferior à cintura com um vistoso, folhado e colorido avental à moda das vendedoras de feira onde em vez dos trocos transporta as molas da roupa e as chaves de casa. Não cumprimenta homens a não ser quando pelo marido acompanhada, que uma mulher tem de se dar ao respeito e não permitir confianças.
O marido, apesar da sua sexagenária idade, não consegue disfarçar o passado e presente de nobre e digno biscateiro da construção civil, tanto na rudeza do trato como na definição musculada do físico, ainda que seja de sorriso fácil e disponibilidade inquestionável. Passeia-se no seu carrinho de 50cc, daqueles ainda mais encolhidos do que um Smart para os quais é preciso apenas uma licença de condução e não a carta. Tarde da noite, o seu caniche está sempre em primeiro lugar e não é invulgar vê-lo de pijama e roupão às riscas a acompanhar pacientemente aquela farejadora bola de pêlo branco (amarelado) ao longo do passeio. A sua perícia na condução é lendária: na semana em que adquiriu a viatura esmurrou-a duas vezes ao estacionar na garagem! Ainda hoje (dois anos passados), não há quem não lhe dê passagem e logo a seguir fuja o máximo que puder na direcção oposta para evitar complicações. Ainda há quem não perceba como não faz de propósito ao conseguir ocupar dois lugares de estacionamento com um carro tão pequeno. Conta-se que não querendo aderir ao gás natural canalizado tomou a iniciativa de fazer um buraco da cozinha por onde passou uma mangueira até ao patamar do elevador onde colocou a sua botija de gás porque assim controlaria melhor os gastos e ganhava espaço na cozinha.
Não me lembro de outras situações. São tantas e tão repetidas que caíram na normalidade. Deles espera-se sempre algo de surpreendente como o hábito de levar o cão a passear na garagem do prédio em que vivem e não se preocuparem com a demarcação de terreno que o animal faz daquela forma tipicamente canina que não preciso de explicar.

Reagimos sempre à diferença, mas em vez de a compreendermos (porque nem sempre somos capazes), tentamos ignorá-la, torná-la invisível para que não choque, não melindre. No meio de tudo isto, uma vantagem: não vivem no meu prédio e jamais terei a ingrata missão de, enquanto administrador do condomínio, confrontá-los com certas atitudes inaceitáveis para quem vive e partilha um espaço comum. Não sei onde encontraria maneira de dizer a duas pessoas assim, sem ofender, que são o exemplo vivo de que se pode sair da aldeia, mas a aldeia jamais sairá de nós...

Um comentário:

Anônimo disse...

Situações dessas acontecem.
Não sei se é das mentalidades, se é do espirito. A verdade é que existem pessoas que parecem não querer ver que tudo muda e nós bem ou mal temos de nos adaptar.
Não é por virmos de uma aldeia, muita gente veio de lá e estão super actualizados, outros nasceram bem na cidade e parecem que vieram do tempo da pedra!!!
Não queria de facto ser o administrador desse predio, bem vejo o que se passa aqui onde habito!!!
Haja saude